domingo, 27 de outubro de 2013

o inteiro das metades


i

quando disse
que andava meio blues
não tinha muita certeza do que queria dizer

talvez não haja tradução para “meio blues”
porque blues é pleno
é totalmente blues
não há como ser meio

é como querer ser meio triste
não existe ser meio triste
a tristeza é sempre na medida exata
não se é mais ou menos triste
se é triste por motivos diferentes
por isso ou por aquilo

mas quando disse
que andava meio blues
será que queria dizer meio triste?

porém não há meio triste nem meio blues
porque quando se está meio triste não quer dizer que se está meio alegre
assim como quando se está meio blues nada garante que se está meio jazz

contudo
ele sempre dizia que estava meio blues
e ela
sempre ficava matutando
tentando entender o enigma
por trás dos seus vermelhos olhos azuis

ii

ele agora solfeja
pentatônicas alteradas
pelos corredores mal iluminados da noite

mas quando
disse que andava meio down
será que sabia que era solidão?

talvez não haja tradução para meio down
pois down  é acabado
inteiramente down
impossível ser meio

é como afirmar que se está meio solitário
mas não existe meio solitário
ou se está só ou não se está

portanto não existe meio down
porque quando se está meio down não quer dizer que se está meio up
assim como quando se está meio só não significa estar meio acompanhado

ele
sempre diz
que está meio down

e ela
sempre fica espreitando
tentando entender o segredo
das metades e dos inteiros rabiscados na nota azul da canção

iii

ele agora
nada rios e mares divididos em vãos
e já não está meio nada
nem meio blues nem meio down

talvez porque esteja ao meio
entre as cores da aurora boreal
ou no meio das águas profundas do pré-sal

pois hoje sabe
que não se pode ser meio alguma coisa
pode se estar no e ao meio do lago
 ou ser o meio para revelar aquele algo
para se chegar a alguma cancha
a algum juízo
ou ao cais do pensamento preciso

meio não é uma metade, mas é quase cabal.
um kamikaze na esquina do quase
rege o  kabuki da gueixa da extinção

quase colhe as flores sofismáticas
mas é tudo meio que uma questão poética
pode se estar meio-a-meio com a pessoa certa
pode se partir em partes para a casa estar completa

ela ensaia
no ritual dos meados
todos os meios-dias
todas as meias-noites
ser a cara metade do cara ao lado

mesmo quando ele está meio blues
quando ele está meio down
ainda que esteja sozinho
metade presença, metade evasão

ela
enseja que haja
no meio dessa controvérsia
histórias de metades
que foram inteiras
pelo consórcio

às vezes
por descuido ou precaução
ele ainda diz assim meio blues:
“hoje estou meio down”
ela beija seus vermelhos olhos azuis
e diz:
deixa de papo furado, bundão!